29.8.07

Fui à consulta habitual com a ginecologista, que as mulheres vivem mais do que os homens porque, entre outros fatores, fazem consulta preventiva. Mas quem precisava da consulta era ela, melhor dizendo, precisava ela daquela meia hora numa agenda apertadíssima, para um arroubo de desabafos, um imenso desfiar de queixas e indignação, que acabou durando mais de uma hora. É uma mulher forte, sem vaidades, rosto e sorriso francos, dessas pessoas que a gente logo acha confiáveis porque conversa olhando nos olhos, não suporto quem desvia o olhar a cada duas palavras. Professora universitária, formada em obstetrícia, cirurgiã, doutora em oncologia, essa médica de currículo longo divide o tempo entre a universidade, o consultório particular, em que a maioria dos pacientes é de clientes de planos de saúde, e o hospital especializado em câncer. Diz, sorrindo, e adivinho um esgar de ironia nesse sorriso, que jamais ficará rica com a medicina porque, tendo farta clientela feminina, optou por se especializar em oncologia e não em medicina estética – ramo que atrai cada vez mais os ginecologistas, afinal as clientes estão logo ali à mão, a mulher que tem filhos logo vai querer parecer uma que não os tem. Ela dedica pelo menos três dias da semana à jornada de 40 consultas hospitalares, remuneradas a 2 reais e 50 pelo SUS, e realiza no mesmo hospital cerca de 10 cirurgias semanais para extração dos mais diversos tipos de câncer, cirurgias que valem 75 reais cada. Mas não é disso, verdadeiramente, que ela se queixa hoje, lembrando que a opção de tratar pacientes pobres com câncer foi precisamente dela, e tem muitas recompensas. Os olhos brilham quando fala das pacientes antigas que se tornaram amigas, uma senhora de 83 anos que se trata há quase 20 e sempre leva de presente um pequeno sabonete, outra que está em fase terminal, mas enche os corredores do hospital com sua alegria, para lembrar a todos que ninguém é eterno. "Trabalhar com câncer é uma opção pela cura, pela sabedoria da aproximação da morte, não tem nada de mórbido nessa profissão", ela explica. Não, não é da tabela do SUS a queixa, nem da falta de condições de trabalho, hoje não. O desabafo é pelas ofensas e pela arrogância de muitos pacientes, a maioria sem recursos. Conta essa mulher, capaz de trabalhar 12 horas seguidas num hospital mal equipado com apenas um pequeno intervalo para um lanche rápido, que hoje não consegue suportar a má educação dos pacientes, felizmente não todos. Citando o Código de Defesa do Consumidor ou o Estatuto do Idoso com o mesmo fervor dos crentes que declamam passagens inteiras da Bíblia – com a fundamental diferença de que estes, pelo menos, conhecem o texto de cor, os outros sabem apenas que existe o “direito do consumidor” – familiares gritam e esperneiam contra a ordem de atendimento dos pacientes, pré-estabelecida pelos médicos. "Veja bem, num hospital com tantos pacientes graves, sou eu quem melhor sabe quais as urgências e as prioridades. Me reúno no corredor com os que estão na fila e explico que a ordem de chegada aqui é menos importante que a vida. Os que esperam mais tempo têm pelo menos o alívio de saber que estão melhores que os outros." É uma nivelada por baixo, digamos assim, mas não deixa de conter um claro senso de justiça, embora sempre apareça alguém, com melhor aparência ou aparente melhor nível de informação, para exigir “seus direitos”, que se traduzem na clássica furada da fila. E frente à recusa, fazem escândalo, jogando pragas apocalípticas, ou a inevitável ameaça de chamar a polícia, ou a imprensa. Os policiais às vezes comparecem, mas pouco podem fazer, no máximo lavram uma ocorrência logo arquivada. Já para a imprensa, sobretudo para as emissoras de rádio e TV, um barraco num hospital é sempre prato cheio, rende ao menos 2 minutos de audiência. Reclama a médica: “nunca vi reportagem acompanhando 24 horas seguidas de trabalho das equipes médicas do SUS, daria um trabalhão, seria exaustivo fazer uma matéria assim. A única vitrine da crise da saúde pública são as queixas dos familiares e dos doentes, quando estão berrando, mas temos hospitais de primeira linha no Brasil e médicos que fazem milagres com o pouco recurso que encontram nos hospitais de segunda. Quer saber, é politicamente incorreto dizer, mas estou de saco cheio do direito do consumidor”. É a deixa para outra crítica, agora da política assistencialista do governo Lula, a nossa médica é absolutamente contrária aos critérios, ou à falta deles, na distribuição do bolsa-família e jura conhecer dezenas de exemplos, entre as próprias clientes, de mulheres fortes e aptas ao trabalho, mas que preferem esperar em casa o depósito mensal do governo. E a uma dessas mulheres, mais exaltada, que ousou dizer à médica a frase já batida "sou eu quem paga seu salário", a oncologista, esgotada, respondeu: "não senhora, sou eu, que paga montes de impostos, quem paga o seu."

3 comentários:

Ricardo Rayol disse...

Luciana, um retrato pertubador. Claro que tem um lado da moeda que não mostram, aqueles médicos que por razões citadas aqui gazeiam o trabalho para cuidar de suas próprias vidas. Na sua próxima visita mande meus cumprimentos pela coragem. E desabafar é sempre bom.

PS: Ela deu uma bela resposta.

SM disse...

Uau! Amei esse texto! Você fez uma verdadeira reportagem que mereceria primeira página em jornais e revistas! É muito importante mostrar o outro lado das situações. Realmente, o Direito do Consumidor não deveria ser usado sem critérios, não deveria ser usado como ameaça nem coisa do tipo. Meus parabéns pela "reportagem" e minha admiração a essa brilhante profissional da área de saúde que, como poucos, ama o que faz e só por isso encontra forças para enfrentar a massacrante rotina da área neste país de ignorantes.

Abraços e bom final de semana!

Simone Maia

Anônimo disse...

ô Luciana, tô começando a ficar preocupado, desde quarta-feira vc não sai da ginecologista, uai...

Não tem nada comigo não, né? Pô, já tô me sentindo culpado...

RM