Uma notícia repercutiu bastante na imprensa esta semana: o Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou uma escola particular de Belo Horizonte – das mais tradicionais e famosas – a pagar indenização de 156 mil reais à moça que em 1997 foi vítima de bala perdida. A jovem tinha 16 anos e estava no pátio, no intervalo das aulas, quando foi surpreendida pelo tiro calibre 38 que perfurou a garganta e provocou seqüelas na fala. Eu me lembro muitíssimo bem do caso na época, foi um prato cheio para a imprensa de todos os calibres, com chamadas e manchetes sensasionalistas que se repetiram por mais de mês. Afinal, não é todo dia que um drama tão comum pra quem vive nas favelas e periferias, encontrar uma bala perdida pela frente, (e aí tenho que abrir um parêntesis para lembrar Millôr Fernandes, que sabiamente avisa que a bala só é mesmo perdida se não encontrar ninguém) mas, como dizia, não é toda hora, ou pelo menos não era em 1997, que um drama comum nas periferias ocorra em pleno oásis da classe média mineira, em bairro nobre e escola tradicional, cercada de altos muros, diga-se de passagem. A imprensa da época antecipou-se às investigações policiais em hipóteses mirabolantes, entre elas a de que o tiro tinha partido de uma novíssima caneta-pistola importada por algum colega emergente recém-chegado dos EUA, caneta que ninguém viu, mas alguém encontrou uma pequena molinha no pátio, dessas molinhas comuns nas cargas das canetas, a molinha bem podia ser de uma novíssima caneta-pistola importada dos EUA, por que não? O circo em torno do drama dessa família durou o tempo que dura a dedicação da imprensa a um tema qualquer, o colégio deu azar porque custou a aparecer outro assunto tão interessante, hoje notícias como essa desaparecem dos jornais em no máximo 3 dias, logo cai um avião, vejam o ACM que incomodou tantos e por tanto tempo em vida, mas que na hora de morrer deu azar de competir espaço na imprensa com o acidente da TAM, o enterro não rendeu mais do que 30 segundos no Jornal Nacional. Mas esta semana o assunto da bala perdida em 97 volta à tona com a decisão do TJ, mas agora boa parte da imprensa poupou o nome da família e da escola, uns porque ficaram com preguiça de fazer pesquisa ou não têm memória, afinal o caso é dos longínquos anos 1997, a moça teve que esperar 10 anos por uma decisão do Tribunal de Justiça e ainda cabe recurso, como já avisou o colégio, que vai recorrer, outros pouparam a família e o colégio porque recentemente foi promulgado um novo código de ética dos jornalistas, que de novo tem só o nome, porque não existe ética velha ou ética nova, e o novo código dos jornalistas decidiu deixar claro o antigo e velho preceito de que é preciso preservar pessoas e instituições de situações constrangedoras, vítimas e suspeitos de crimes inclusive, já que a justiça é cega e todos são inocentes até prova em contrário, mas os jornalistas vinham se esquecendo que reportar é apenas contar, de preferência ouvindo vários lados, já que é impossível ouvir todos. Mas a imprensa voltou ao tema, ainda que discretamente, em manchetes que sugeriam um certo alívio, ufa, é possível receber uma indenização se seu filho encontrar uma bala antes perdida, no pátio da escola. Eis mais uma prova de que estamos todos meio anestesiados achando tudo por aí normal. E nem atentamos para a verdadeira estranheza da notícia: a indenização só saiu e com valor tão alto - se é que é possível estipular algum valor, alto ou baixo, para o trauma de um tiro e ainda mais com seqüelas permanentes nas cordas vocais, mas o valor também não é insignificante, ou não seria manchete nos jornais - a indenização de 156 mil saiu finalmente porque a escola é famosa e a família de classe média, imaginem se estados e municípios fossem condenados a pagar indenização para as famílias a cada vez que uma criança ou adolescente for vítima de violência no pátio de uma escola pública, ocorre que a essas famílias nem ocorre pedir indenização, nem sabem como nem a quem recorrer e ocorre também que a justiça não condenaria estados e municípios por manterem escolas públicas com pátios sujeitos a cenas de violência, coisa que aliás ocorre todos os dias, sem muita repercussão na imprensa, alguns segundos na TV ou uma nota de pé de página no jornal e olha que, muitas vezes, a bala nem era perdida, era bala com endereço certo e confirmado. O alívio é para as mães de classe média, as escolas particulares que dêem um jeito de manter nossos filhos sãos e salvos das balas perdidas ou pagarão indenização, a justiça tarda mas não falha...
2 comentários:
Adorei o texto, Luciana!
Infelizmente, é de conhecimento de todos que a tal "justiça" brasileira é uma piada de mau gosto. Não nos cabe, nem por isso, cruzar os braços ou, pior, fingir que é normal. Aliás, o que dá tristeza é que nem se trata mais de fingimento. De tanta bala voando pra lá e pra cá neste país (e nos outros também, claro) a gente já está achando que todo dia é dia de São João. Estalos pipocando pelo céu e gente caindo pelas ruas, escolas, estradas... Festa "tradicional" assim é das mais tristes que poderíamos ter herdado!
Meu abraço
E realmente nossa imprensa dá mais espaço para a classe média, mais ainda pra classe alta. Viva nossa justiça, que mantém a ralé entupindo os presídios e os poderosos em prisão domiciliar, isso quando são condenados. Fica a pergunta: é nossa Defensoria Pública que é uma mer... ou a justiça é que é vesga?
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