Minha filha dá aulas em oficinas de vídeo na periferia de Belo Horizonte. Aliás, uma oficina é na periferia, no infernal Conjunto Paulo VI, a outra é na favela mesmo, uma com o sonoro nome de Pedreira Prado Lopes, que a comunidade chama apenas de Pedreira – um pouco para evitar o trava-línguas, um pouco porque é, sem trocadilho, uma pedreira viver ali – e a polícia abrevia para PPL, diz que é de lá que sai o preço do grama da cocaína e da pedra de crack em Beagá, com a ajuda da “Data PPL” são atualizadas as cotações todos os dias. No infernal Paulo VI a oficina de vídeo é para adolescentes que se inscreveram por vontade própria, é verdade que a maioria preferia uma oficina de dança, de funk ou de axé, mas essas tiveram as vagas preenchidas primeiro, o jeito é encarar a oficina de vídeo mesmo. Na Pedreira, as aulas são para jovens infratores em liberdade assistida, esses são obrigados a se inscrever ou perdem chances e benefícios. É possível, pois, imaginar com que receptividade a oficina, e minha filha, foram recebidas por lá, a saudação mais calorosa foi de alguém que se levantou para anunciar: “não fico aqui nem fudeno”. Não pedi licença à minha filha pra falar sobre o trabalho dela e, na verdade, devo já me desculpar por imprecisões ou incorreções inevitáveis, não tenho como ser fiel aos fatos e suas múltiplas facetas, conheço apenas a face de minha filha quando chega em casa exausta e muitas vezes triste de dar dó. Não me chegam muitos detalhes, a filha sabe que há detalhes sobre essas idas freqüentes à Pedreira que deixariam as mães de cabelo em pé, me chegam apenas algumas frases soltas, comentários esparsos, um menino que não subiu o morro porque está jurado de morte, outro que sumiu das aulas por idêntico motivo, o irmão de um aluno que acaba de ser assassinado, uma criança que vai à aula com outra criança agarrada ao seio, uma redação sobre a vida que só fala em morte. Num lugar como esse, a idéia de realizar uma oficina de vídeo é temerária, a começar pelo fato de que se espera que a oficina termine com a produção de ao menos um vídeo. É preciso subir a favela com roupas simples que escondem equipamentos caros e é preciso, sobretudo, tomar cuidado para não filmar nenhum ângulo que desagrade aos traficantes locais, isso sim que é desafio. Em setembro a Pedreira enfrentou uma guerra, mais uma, entre gangues. Num fim de semana foram 4 baleados, no fim de semana seguinte homens encapuzados invadiram uma festa num sítio, mataram 7 e metralharam outros 14, dias depois um rapaz invadiu um ônibus e saiu atirando pra matar o rival, acertando também um velho de mais de 80 anos – e tem gente que ainda não acredita em destino, o velho passa dos 80, pega um inocente ônibus com o Free Pass dos velhinhos, pra morrer em frente à Pedreira com uma bala na cabeça. Várias aulas foram canceladas porque a polícia não sobe o morro, mas bloqueia as entradas cá embaixo, os moradores entrincheirados como num gueto de Varsóvia. Minha filha conhece parte da história de alguns dos mortos e feridos, a maioria mulheres e adolescentes. A guerra continua, claro, mas a polícia deu uma trégua, os governos anunciaram medidas de urbanização não se sabe pra quando e a imprensa já encontrou outras chacinas pra noticiar. Minha filha voltou a subir a Pedreira em outubro, com a coragem e a ousadia bem típica dos mais jovens. Os comentários dela estão cada vez mais esparsos.
12 comentários:
Sua filha é bonita?
Ô menina, dessa vez você se superou. Este foi, prá mim - e sem demérito para outros ótimos cronistas que conheci - o melhor texto que li nesses dois meses, acho, de "blogosfera".
Retrato fiel e de apagadas cores da realidade (sem quase nenhum eco) da maioria das grandes
cidades brasileiras.
Não queria nem comentar, prá não correr o risco de soltar alguma bobagem, mas vamos lá:
1) A máxima "favela não é problema e sim solução", usada e abusada pelas esquerdas de antanho (coisa de "anta", mesmo), é, hoje, de uma estupidez repugnante; esperemos que as promessas de urbanização sejam cumpridas e seguidas de outras medidas básicas (nas áreas de educação, saúde, segurança e emprego) que permitam suprir as necessidades mínimas de dignidade humana dessas populações;
2) Tenho quase nenhuma experiência pessoal com favelas, mas lembro-me de uma pesquisa que fiz, recém ingresso na universidade, como parte dos trabalhos escolares, já se vão uns bons vinte e tantos anos. Aliás lembro-me com clareza de detalhes, tal o impacto que a visita me provocou. E, apesar dos anos, só não continua igual porque, de fato, piorou...
3) Proponho boicotar a expressão "comunidade"; os favelados moram na mesma cidade, devem ser chamados - e principalmente, tratados - de cidadãos. E olha que a "marselhesa" já tem mais de duzentos anos...
4) Espero que tenha terminado a atividade profissional ou benemérita desenvolvida lá por
sua pimpolha. Fosse minha não subia nenhuma vez e ainda tomava uns "cascudos"...rsrs
Parabéns, RM
Lu, vc tem filha grande assim?
Meu deus!
Olá, Luciana:
Nosso amigo RM recomendou este post com muito entusiasmo.
Vou tecer alguns comentários não propriamente sobre o texto, mas sobre esse absurdo que é o domínio dos morros por traficantes numa cidade como Belo Horizonte, seguindo o modelo carioca.
1) A Polícia Militar de MG já foi considerada a mais eficiente do Brasil. Hoje, pelo que se vê, é uma das menos preparadas e mais incompetentes, além de truculentas. Não tem nenhuma tropa de elite que pelo menos se aproxime do que o BOPE e a CORE fazem lá no Rio.
2) É um absurdo que uma cidade que tem muito menos favelas que o Rio (lá são 752; aí devem ser no máximo umas 100 imagino eu) deixe a situação ficar no descontrole total como está na famosa Pedreira, no Paulo VI, no Taquaril, Cabana do Pai Tomaz e outras.
3) Inacreditável como uma prefeitura governada pelo PT há 20 anos, e ainda mais com um prefeito competente como o Pimentel, que conheço bem, faça apenas um trabalho do tipo quebra-galho, sem tocar nas questões fundamentais dessas favelas, que são a assistência à saúde, a urbanização, a remoção e a relocalização (em alguns casos) e a escolarização obrigatória, compulsória de crianças, jovens e adultos.
Belo Horizonte está caminhando para se tornar um Rio de Janeiro em tamanho menor, pouco menor.Mas com governantes tão incompetentes e provavelmente tão corruptos quanto.
Acho que a sua filha está correndo mais riscos do que deveria. Sugira a ela fazer uma pós-graduação em Barcelona... rs rs rs
Abraços do
MR
18/10 - 18:00
Oi, gente!
Rafael, minha filha é linda, linda! - e não apenas para a mãe coruja. Mas creio que ela não é pro seu bico! - na opinião da mãe coruja... rs rs
RM, claro que tive muita vontade de dar "uns cascudos"... rs rs
Mas não é possível segurar os filhos!
Lendo seu comentário e o do Marcos me dei conta de que este post foi uma espécie de desabafo, que eu precisava fazer. Sim, fico com o coração na mão.
Mas ela não sobe a favela para uma "ação benemérita". Formada em jornalismo, foi para Londres passar um ano, onde fez uma prestigiada pós-graduação em cinema. Na volta, trouxe um bebê (meu neto mais lindo do mundo!) na barriga. Deu uma parada numa carreira que seguia a passos médios pra cuidar do filhote. E ficou, literalmente, sem opções profissionais aqui nesta quase província chamada Belo Horizonte. Está dando essas aulas para sobreviver mesmo! São oficinas frutos de verbas federais, ministradas pela prefeitura em parceria com ONGs.
E percebo que o tempo vai passando e os comentários dela vão ficando mais esparsos também porque ela vai se inserindo naquela realidade. Não se espanta mais facilmente. Isso é bom? É ruim? Vá saber.
Aliás, ela sabe tudo de cinema e não perde um filme, mas sintomaticamente ainda não foi ver Tropa de Elite... Não creio que ela terá reação igual a da esmagadora maioria, que se identifica com a violência e acaba aplaudindo em gozos de sadismo os excessos do BOPE carioca. Minha filha sobe e desce a favela, todos os dias, com muito mais medo da polícia do que dos bandidos...
Maria Luiza, tive filho ainda criança, viu? rs rs rs
Calma!! Queria saber se a filha é bonita apenas porque não existe mulher bonita de mãe feia.. rs rs rs
Brincadeira, nem conheço mas já virei fã dela, como sou da mãe.
Abraço,
Rafael
Boa cara, pelo visto você deve estar se saindo bem na pós-graduação em cara-de-pau...rsrs
Mas não pense que vai ficar sem resposta comments atrás não, viu? Tô só esperando a Luciana amaciar um pouco e vou "pegar geral"...
RM
Prezada da filha que dá aulas de vídeo na periferia.
Muitas das informações que você disse são verdadeiras, viver na PPL realmente é bem difícil.
Admiro a sua filha, e sei, que ela, assim como eu que também participo de oficinas para jovens lá, acreditamos que podemos transformar, pode ser um ou dois jovens, não importo, algo muda na cabeça deles, fica sempre um recado.
E se um ou dois não forem cooptados pelo tráfico, já é gol dentro.
Prezada da filha que dá aulas de vídeo na periferia.
Muitas das informações que você disse são verdadeiras, viver na PPL realmente é bem difícil.
Admiro a sua filha, e sei, que ela, assim como eu que também participo de oficinas para jovens lá, acreditamos que podemos transformar, pode ser um ou dois jovens, não importo, algo muda na cabeça deles, fica sempre um recado.
E se um ou dois não forem cooptados pelo tráfico, já é gol dentro.
Lu,
Me abstenho de dar pitaco! E entendo sua colocação como um desabafo, aquela coisa de falar pra se ouvir e não somente pra ser ouvida. Circustâncias como essas constituem muitas facetas.
Tenho um único filho, de 13 anos, vice-campeão brasileiro de judô. Além do colégio, ainda tem tempo pra estudar música, toca violino, baixo e quer fazer faculdade de cinema. Acaba de sair agorinha daqui pra dar uma entrevista na TV, incentivar o esporte e falar do torneio internacional do qual participou na Argentina há uma semana.
Um pedaço do meu coração fica sempre no aeroporto de Ribeirão-Preto/SP toda vez que ele tem que viajar. Já chorei, já me descabelei, se a neurose não tivesse sido apenas suficiente, contida, penso que ele nunca teria chegado aonde chegou. E tudo o que conquistou foi sem patrocínio, mas com uma força de vontade e paixão ao esporte que lhe são peculiar, e com nosso apoio irrestrito.
Quando meu coração grita e fica roxo eu desenterro estas palavras do Carlos Castañeda:
"Olhe cada caminho com cuidado e atenção. Tente-o tantas vezes quantas julgar necessário. E se preciso for, faça a si mesmo uma pergunta:
-Possui este caminho um coração? Em caso afirmativo, o caminho é bom. Caso contrário, esse caminho não possui importância alguma."
Bjs.
Ei, anônimo!!
Que legal! Vc também dar oficinas na PPL e contrar esse blog é mesmo incrível!
Sim, sem dúvida nenhuma, se apenas UM desses jovens encontrar um caminho, todo o trabalho já terá valido a pena! E ela diz que conhecer aquelas pessoas de perto também já vale a pena.
Há uma corrente de estudiosos do problema do aliciamento dos jovens pelo tráfico que defende que a única alternativa eficaz é batalhar caso a caso, menino a menino. Conquistar um a um. Resgatar em cada um a autoestima. O trabalho é mesmo hercúleo.
Amélie, é isso aí. Somos as escolhas que fazemos ao longo da vida. Não somos mais que isso, um amontoado de escolhas a cada encruzilhada. Eu, claro, apóio a escolha dela.
Beijos a todos e bom fim-de-semana
Isso vai além do razoável, a não ser que se queira ganhar uma vaga cativa no céu, sem intermediários.
Se lá o bicho pega, deixem os animais se matarem.
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