Não se fala em outra coisa, depois do internacionalmente famoso bebê atirado na Pampulha, temos agora um bebê atirado no Arrudas, córrego imundo que recebe dejetos da indústria e do esgoto de milhões de pessoas da região metropolitana de Belo Horizonte. Para a imprensa, um delírio, a matéria e a capital de Minas serão destaque novamente em todos os noticiários de rede, rende foto na capa dos principais jornais e revistas: estão lá os vizinhos que se atiraram nas águas fétidas para salvar a criança, está lá o depoimento emocionado da menina que achou que o que via era uma boneca, mas a boneca enfim suspirou, está lá a repugnante imagem do lixo e da merda que bóiam onde boiava a bebê – e estão lá os fotógrafos e as emissoras de televisão que comemoram, foi possível até roubar, durante o rápido trabalho da equipe do Samu, algumas cenas do corpinho frágil e rosa da quase morta recém-nascida. Dia seguinte tem mais e melhor matéria, a arranjada e ensaiada visita dos salvadores ao hospital, mais poses para os fotógrafos e cinegrafistas, por sorte um dos rapazes faz aniversário nesse dia e declara que "teve sorte", não se sabe se a sorte foi ter retirado o bebê do córrego ou ter conquistado, finalmente, seus 15 segundos de fama. Mais um dia, nova manchete garantida, a bruxa mãe foi presa, a polícia avisa que vai apresentar a bandida, mas os médicos, danados, mandam a moça ao hospital, ainda havia restos de placenta. As atenções se voltam para a bebezinha que luta pela vida, batizada ninguém sabe por quem de Michele, mensagens comovidas não param de chegar, de todo o Brasil e de outros países milhares de pessoas – gente que nunca pensou em adoção – se oferecem para criar a menininha, mas a bebê está em coma, tem um traumatismo no cérebro, não se sabe se vai sobreviver, se viver certamente terá seqüelas. Agora é o pai quem aparece na TV, um servente de pedreiro cercado por tantos microfones quanto Renan em dia de julgamento, diz que está separado da mãe da bebê há meses, podemos adivinhar que é do tipo que some assim que percebe uma barriga prenhe, mas se a filha for mesmo dele vai, sim, ele garante, criar a menina. A mãe chora e diz em depoimento que atirou a criança porque achou que estava já morta, a bebê, não a mãe, e não foi da janela não senhor, oito metros de altura como mostrou a TV, jogou aqui de baixo, perto do rio, e conta que já tinha tentado um aborto que não vingou – a natureza tem dessas coisas, tantas querendo e perdendo, tantas que não querem, ou não podem ter, mas não conseguem perder. Ninguém sabe nada da história dessa mulher, não sabemos como ela vive e com quem, se é ou se foi em algum tempo amparada por uma família, não sabemos do desespero da miséria, não temos idéia das histórias de desamor e de ódio dessa vida. Quem é mãe até sabe de que revoluções são capazes os hormônios na gravidez e após o nascimento, mas não acreditamos, de verdade, nessa coisa chamada depressão pós-parto, isso é mais uma invencionice da moderna medicina. A opinião, que já é pública, está formada: a moça foi condenada, pela justiça dos homens e pela justiça de Deus, amém.
7 comentários:
Bom, vamos lá... Até aqui eu estava só de gozação, mas a partir de agora você perceberá que não sou apenas mais um rostinho bonito e um corpinho enxuto (para a minha idade) e tenho alguma coisa (será?) debaixo dos caracóis dos meus cabelos...
Primeiro, o óbvio: belo texto, no seu peculiar, mas elegante (apesar de informal) estilo. Mais, se não pode prescindir do noticiário, do "tempo real", parece inteiramente despropositado que um blog não possa transendê-lo e acrescentar diferentes óticas ou
abordagem distinta da publicada opinião pública. E este seu post tem essas qualidades, permite o exercício da reflexão, artigo tão raro em tempo real...
Pequena resenha dos diferentes e importantes aspectos tangenciados: "a arranjada e ensaiada visita dos salvadores ao hospital", perfeita descrição da carga emocional das imagens; os
"quinze segundos de fama", uai, não eram minutos?, que esgotam, por overdose, a notícia; o drama pessoal desprezado; o sistema de saúde estupidamente ineficaz; as doenças do parto; a questão da legalização do aborto...
A história, propriamente dita, vem de longe, no Brasil-Colônia eram famosas as "rodas dos enjeitados", que davam à caridade eclesiástica a imcumbência de criar os rebentos
indesejados, geralmente mestiços produtos de violência sexual. Depois disso os orfanatos, os juizados, as febems, o Estatuto do Menor (também conhecido pelo sugestivo nome de ECA), os conselhos tutelares, que devem carecer de tutela...
O que penso? Aí o buraco é mais embaixo e talvez você se espante com as posições que defendo, mas, para mim, ao fim e ao cabo, trata o evento da questão do direito à vida. Curto e grosso: sou contra a legalização do aborto e, por derivação óbvia, também contra a
pena de morte e a eutanásia. Sou contra por todos os motivos que não cabem aqui, menos os motivos religiosos, matéria na qual sou pouco versado, apesar de curioso.
Me impressiona a forma vulgar com que é tratado esse assunto, por natureza complexo e delicado. O ministro da saúde Zé das Couves, a jornalista enraivecida (mal amada?), presidentes de ongs, uma doutora em sei lá o quê de genética; todos se autodesignando
próceres da civilização e da modernidade, os que lhes são contrários, obscuros conservadores.
Eu não queria entrar no mérito mas há um argumento, recorrente e enfastiadamente repetido, que merecia estar no seu outro blog: "a mulher deve ter direito ao seu próprio corpo"; peraí, quer dizer que o filhote faz parte do corpo dela?
Talvez me chamem de conservador ou reacionário, mas desde logo me defendo atacando; essa turma é um bando de porra-loucas ignorantes, que deveriam voltar aos bancos escolares para concluir a formação fundamental antes de se doutorarem em alguma merda genética em
Harvard...
RM
Bem, RM, o assunto é mesmo complexo. Pra começar digo que eu, também, não sou a favor do aborto. Digo mais: não acredito que mulher alguma seja a favor do aborto, pelo menos não a favor do aborto como método contraceptivo. Eu, Luciana, perdi alguns bebês na barriga. Só quem sofreu um aborto, como eu, sabe a dor que isso causa numa mulher - acredito que em alguns homens também. Nenhuma mulher, em sã consciência, "gostaria" de fazer um aborto, escolheria um aborto ou acharia que o aborto é uma "solução fácil". Não vou entrar no mérito do que fez a mulher que atirou a recém-nascida no Arrudas, sei apenas que não tenho como julgá-la. Mas consigo tentar compreendê-la.
Deus não é o meu forte, não sou nem nunca fui religiosa, o ateísmo foi imposto na minha família. Essa discussão nada tem a ver, aliás, com motivos religiosos, né?
Sim, é verdade que o argumento de que a mulher tem "o direito de dispor do próprio corpo" não se aplica ao aborto - que diz respeito ao corpo de um outro. Mas algumas mulheres, sabemos, foram obrigadas a dispor de seu corpo a um homem. Assim como estupro não tem nada a ver com desejo, é uma questão de ódio, aborto não tem a ver com a liberdade de escolha, com a possibilidade de dispor do próprio corpo, tem a ver com desamor. Sei lá.
Putz, Luciana!
Sempre passo por aqui, botei o Verborragia Feminina nos meus favoritos. Então sempre passo por aqui, mas você tinha desistido. Hoje venho e vejo este texto! Que assunto denso, foi me dando um aperto no coração. Foi bom também ler este comentário do RM, eu também sou totalmente pela vida, sempre. Mas fiquei pensando que essa mulher não tinha vida. Nem vai ter mais. Está condenada é pela própria consciência. No mais, você fez mais um texto mostrando a hipocrisia da mídia, parabéns. Vou voltar aqui sempre. Um grande abraço,Cláudia Lins.
PS: não sou de BH, mas vi a notícia do bebê jogado no Arrudas em vários jornais, aqui em São Paulo.
Luciana, foi completamente mortal em seu post. desancou a todos com propriedade. parabens.
Ah, esqueci de citar a questão das pesquisas com "células-tronco", outro tema integrante do mesmo balaio de gatos. Por coerência (e por amor à lógica) também sou contra.
Já a Cláudia Lins me provocou empatia imediata, desde a primeira vez que apareceu aqui na praia da Luciana. E, sutilmente, tem razão: todos devem ter direito à vida, inclusive digna. Mas a recíproca não pode ser verdadeira; se não se tiver, o que se supõe seja o caso da mãe do bebê, isto pouco atenua o resultado final da ação cometida.
Que pena você não ser de Beagá, Cláudia?
RM
Bem, esse troço de não por moderação nos comentários impede uma certa ordenação, então vai ficando mesmo meio embolado. Vou responder pela ordem, quem quiser conferir, estão lá os horários.
Cláudia Lins!!!
Você não imagina a supresa e a alegria quando cheguei em casa, inda agorinha, e vi que você tinha vindo. Obrigadíssimo, querida! Fiquei feliz também em saber que somos conterrâneas, seu sou paulista, minha mãe mora em Sampa. Apareça sempre, RM também vai agradecer. rs rs Beijos.
Ricardo Rayol, é sempre uma honra receber sua visita, viu? Veja lá, na listinha dos posts que visito: leio seus posts todos (quase) os dias. Beijo.
eu já ouvi alguns relatos sobre depressão pós-parto. Em alguns casos as mães tentaram mesmo machucar as crianças. Questão bem difícil essa. Belo post.
Adolfo
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