6.7.08

Três destinos femininos

Por tudo o que já foi dito aqui nos últimos dias, decidi transcrever artigo de uma das mulheres mais interessantes e inteligentes de nosso tempo, Luya Luft.
Três destinos femininos

Ayaan Hirsi Ali, uma jovem política e escritora somaliana, naturalizada holandesa e residente nos Estados Unidos, disse numa palestra que "as verdadeiras fronteiras são as do pensamento". Referia-se a toda sorte de discriminação e preconceito que tanta violência e desgraça geram.Vitimada desde criança por um fanatismo brutal, destinada a casar com um homem que não conhecia, conseguiu fugir e acabou uma figura admirada no mundo inteiro. Jurada de morte por certos grupos muçulmanos em seu país de origem, ela só pode circular com forte segurança.
Olhei aquela quase-menina tranqüila, mas de olhar profundo e muito atento. Pensei no quanto, por qualquer bobagem, nos fazemos de vítimas, enquanto aquela jovem não apenas sobrevive, mas age e se afirma: sem desejo de vingança e sem o detestável espírito de mártir, que produz o ressentimento mais maligno.
...

Acabo de emprestar minha voz para o documentário sobre outro fato espantoso, o das Noivas do Cordeiro. Um vilarejo com esse nome, perto de Belo Horizonte, é habitado por algumas famílias – mais mulheres, pois os homens têm de buscar fora o sustento de seus filhos e só vão para casa nos fins de semana. Elas vivem ainda hoje isoladas e discriminadas de uma forma cruel. Por serem bandidas? Não. Uma antepassada delas foi excomungada pela Igreja há mais de 100 anos, por haver tentado ser um pouco feliz com seu novo companheiro. Como era casada, foi execrada pelos fariseus de plantão. A maldição atingiria quatro gerações de seus descendentes.
Tiveram muitas filhas, que geraram muitos filhos, com os rapazes que ousaram delas se aproximar. Fundaram uma comunidade singular em tudo: pela duração desse isolamento e pela dimensão de sua luta para provar que são dignas de respeito e afeto. São mulheres de idade ou bem jovens, saudáveis, cara limpa, sorriso aberto, numa fraternidade e cumplicidade comoventes. Ali tudo é de todos, todas se ajudam, todas suportam juntas o isolamento e as calúnias. "Cuidado, lá vêm elas!", comenta-se quando chegam a outro povoado ou à capital para alguma compra necessária. Tudo lhes é dificultado: escola, atendimento médico e qualquer direito de cidadania. Os rapazes que com elas se relacionam, quando vão à cidade, são atormentados com insultos do tipo: "Como se atreve a deixar sua mulher? Todo mundo sabe que elas não prestam.
Meu amigo outro dia esteve lá, e foi uma farra".
Nos depoimentos, algumas choraram relatando a dureza dessa situação. Que talvez esteja acabando, pois, com muito trabalho e desejo de progredir, elas conseguiram instalar televisão e começam a conhecer o mundo. Botaram também a internet, outra janela para fora de sua condenação. Finalmente, elegeram uma vereadora, fundaram uma associação e, após quatro gerações, talvez possam ser olhadas com o respeito que merecem mais do que tantas pessoas daqui de fora. O que vão ganhar na realidade, para além dos limites de seu delicioso e feliz povoado? Tenho minhas dúvidas sobre as vantagens todas: vão conhecer corrupção e omissão, logro e malogro, frivolidade, violência e competição desleal. Imagino que seja inevitável libertarem-se da difamação e serem integradas ao mundo. Mas quem sabe seria melhor botar o país inteiro dentro daquele vilarejo, vivendo de maneira simples, limpa, fraterna e feliz?
...

Não posso encerrar sem mencionar Ruth Cardoso. Uma das pessoas mais discretas e dignas entre nós. Intelectual respeitada e generosa cuidadora dos desvalidos, que fundou o Comunidade Solidária, verdadeiro berço de iniciativas como o Bolsa Família, apenas com outros contornos – amparar, mas preparando para que os favorecidos logo possam ganhar seu sustento. Pois essa verdadeira dama, em seus últimos meses, com a saúde frágil, foi achacada por quem pretendia (talvez ainda pretenda) expor suas contas e de seu marido, procurando ali algumas das tão comuns falcatruas atuais. Neste país, a fronteira entre justo e injusto, verdadeiro e falso, correto e maldoso precisa ser urgentemente restabelecida.
Lya Luft

6 comentários:

Marcos Rocha disse...

Oi, Lu G:


Bela idéia de transcrever Lya Luft. Ela tem uma forma de escrever muito forte, muito poderosa. Tudo que eu já li dela tem densidade, "sustança".

Fiquei mais curioso ainda para conhecer esse documentário a que ela se refere, das Noivas de Cordeiro. Sinceramente, nunca tinha ouvido falar nesse caso. Onde exatamente fica esse povoado, em qual município, você sabe?

Quanto à Dona Ruth, eu já tinha escrito sobre ela quase que com a mesma abordagem. Mas o texto dela, obviamente, é melhor que o meu.

Abraços

MR
6/7 - 20:18

Verbo Feminino disse...

Marcos, estamos fazendo um especial lá na TV sobre as Noivas de Cordeiro, exatamente por causa desse documentário, vou pegar os contatos pra vc.
Na verdade a Lya Luft foi até discreta sobre o caso. Elas foram chamadas de putas mesmo, e discriminadas como putas, no sentido pior da palavra, de mulheres da vida desencaminhadoras de homens, meio demônios. Coisa da Idade Média... E se isolaram.

Um caso realmente impressionante.
Depois mando pra vc por mail.
Beijos

Anônimo disse...

É um facto espantoso – embora banal para a ciência genética – que todos os seres vivos estejam tão intimamente relacionados. Pensar que os seres humanos partilham mais de metade dos seus genes com as lombrigas, as moscas, as minhocas, as formigas e os ratos das sarjetas e quase todos os seus genes com os chimpanzés é algo que me surpreende continuadamente. Contudo, este nosso parentesco com os animais, de carácter tão íntimo que se situa até ao nível dos genes, não impede as pessoas de tomar remédio para matar as lombrigas, arrancar as asas às moscas, espetar as minhocas em anzóis, espezinhar formigas, deitar veneno nas sarjetas onde vivem os ratos, nem de injectar vírus desconhecidos em macacos para depois testar drogas ainda mais letais que os vírus. Para os espíritos de prováveis extraterrestres muito mais evoluídos do que os humanos, tais comportamentos da humanidade em relação aos seus parentes que coabitam com igual direito o planeta, só constituem surpresa até repararem como os seres humanos tratam outros seres humanos: As câmaras de gás, as forcas, os tiros nas nucas, os linchamentos, as guerras, a tortura, os genocídios, o ostracismo, o racismo, os preconceitos, a intolerância, e tantos outros milhentos actos de agressão e de ódio. A surpresa dos extraterrestres aumenta quando o seu reparo vai mais além: Os mesmos seres humanos que eliminam ou maltratam outros seres humanos, que lançam os próprios filhos pelas janelas sem os terem previamente ensinado a voar, que fazem testes científicos cruéis com os macacos e espetam as minhocas nos anzóis das suas pescarias de sábado à tarde, que segregam por quatro gerações um grupo de mulheres de Belo Horizonte, que investigam exaustivamente cada centavo existente na conta bancária de uma benemérita, etc., são os mesmos que escovam com o maior cuidado e carinho a pelagem do gato da casa e administram-lhe vitaminas de felicidade, levam a passear o cachorro ao jardim onde brincam animadamente com ele, e deixam os hamsters instalados em hotéis de cinco estrelas concebidos para animais quando decidem partir de férias para outros hotéis, onde vão chapinhar com uma alegria patética em piscinas conspurcadas com urina de velhotas incontinentes e deixar gorjetas de dez por cento do consumo realizado para outros seres humanos iguais a eles.

É eventualmente com um espanto idêntico que nós, ocidentais, lemos ou ouvimos a história da jovem somali que, numa aventura digna de conferências humanistas, fugiu da sua terra natal para não casar com um desconhecido, enquanto lá, algures na África setentrional, muitos seres humanos se espantam como nós, seres humanos iguais a eles, somos capazes de casar e descasar inúmeras vezes com homens e mulheres que já se casaram e descasaram inúmeras vezes, e, ainda mais grave e admirativo - porque nos situa numa outra fronteira do pensamento -, como somos capazes de comer uma feijoada de carne de porco e achá-la deliciosa.

Ricardo Soares disse...

bom tê-la de volta... principalmente transcrevendo coisas legais, escrevendo coisas legais e visitando o meu blog roxo
bj do paulista mais carioca que vc conhece...

Reiko Miura disse...

Que incrível essa história das Noivas de Cordeiro. Só fico pensando quantos de nós, brasileiros, enchemos a boca pra falar sobre os preconceitos nos outros países, enquanto uma situação como essa é perpretada logo ali, pertinho de Belo Horizonte!

Lembrei das Noivas da Seca, que a Lalada Dalglish trouxe à tona no seu livro de mesmo nome. Essas são mulheres do vale do Jequitinhonha, na mesma Minas Gerais, que levam a vida cuidando da lavoura e fazendo a cerâmica mais bonita que conheço.

Anônimo disse...

ESPANTOSO QUE AS PESSOAS FAÇAM TANTOS COMENTÁRIOS SOBRE ACONTECIMENTOS QUE NÃO ACONTECERAM COM OS EXAGEROS E PARCIALIDADES. TODA NOTÍCIA NÃO DEVE SER BASEADA SOMENTE NUMA VONTADE. A HISTÓRIA DE NOIVA DO CORDEIRO NÃO É O QUE UM DOCUMENTÁRIO-COMENTÁRIO FEITO EM DEZ DIAS APRESENTA COMO NOS ESTUDOS CIENTÍFICOS DE LONGOS PERÍODOS.
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www.belovalecultura.blogspot.com

E VAMOS TROCAR IDÉIAS QUE FAZEM A DIFERENÇA ENTRE O JORNALÍSTICO E O ANTROPOLÓGICO.

YACCOBB PFEFFER